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A coculpabilidade e a vulnerabilidade social como atenuantes genéricas inominadas.


 

Por Ellen Caroline Mottin

A dosimetria da pena é um instrumento de quantificação e qualificação da sanção aplicável ao autor de um crime. Pautada nos princípios da proporcionalidade e pessoalidade, deve ser construída com a verificação de todas as circunstâncias relevantes para cada caso (artigo 59, do Código Penal).


O legislador, sabendo da impossibilidade de se abarcar no texto de lei todas as circunstâncias que determinado fato pode apresentar, achou por bem, na segunda fase da dosimetria da pena, criar um artigo genérico, dando ao magistrado discricionariedade para elencar outros fatores concretos do caso em análise que não os positivados.


Assim, nos termos do artigo 66 do CP, a pena pode ser reduzida “em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei”, o que significa que, verificada uma circunstância concreta do fato capaz de influir no conteúdo do tipo de injusto ou na reprovação da culpabilidade, ela deve ser computada para a diminuição da pena (JUAREZ, 2014).


Com base no artigo supracitado, propõem Eugénio Raul Zaffaroni, Alejandro Alagia; Alejandro Slokar e José Henrique Pierangeli, que o julgador avalie a culpabilidade por vulnerabilidade e a coculpabilidade dos acusados. (ZAFFARONI; ALAGIA; SLOKAR, 2002) e (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011).


Em relação à vulnerabilidade, os autores descrevem o que é público e notório, o fato de haver uma seletividade na repressão penal:


La inevitable selectividad operativa de la criminalización secundaria y su preferente orientación burocrática (sobre personas sin poder y por hechos burdos y hasta insignificantes), provoca una distribución selectiva en forma de epidemia, que alcanza sólo a quienes tienen bajas defensas frente al poder punitivo y devienen más vulnerables a la criminalización secundaria, porque (a) sus personales características encuadran en los estereotipos criminales; (b) su entrenamiento sólo les permite producir obras ilícitas toscas y, por ende, de fácil detección; y (c) porque el etiquetamiento produce la asunción del rol correspondiente al estereotipo, con lo que su comportamiento termina correspondiendo al mismo (la profecía que se autorrealiza)[1] (ZAFFARONI; ALAGIA; SLOKAR, 2002, p. 10).



Enquanto que os pobres e marginalizados são a clientela preferencial do sistema repressor, os ricos e poderosos são praticamente inalcançáveis, seja porque não apresentam os estereótipos de criminosos, seja porque o sistema econômico capitalista reprime os crimes próprios desta classe social apenas simbolicamente.


Son multiples los casos que demuestran acabadamente que en nuestro margen los poderosos solo son vulnerables al sistema penal cuando cousionan con otro poder mayor que logra retirarles la cobertura de invulnerabilidad, en una pugna que se desarrolla en la cupula hegemonica[2]. (ZAFFARONI, 1998, p. 113)


Em vista destes fatos evidentes, é mais culpável aquele proveniente de um segmento social poderoso que tenha sido criminalizado que o socialmente vulnerável, uma vez que, por sua colocação social, está mais suscetível às investidas da repressão penal, enquadrando-se no estereótipo do cliente preferencial do sistema repressor. Assim, sugerem os autores, a culpabilidade dos marginalizados da sociedade deve ser atenuada pelo grau de vulnerabilidade que o cidadão tem em relação ao Estado.


Na mesma linha, necessária é a aplicação da “coculpabilidade”, que exige uma valoração mais benéfica da culpabilidade quando as condições sociais do agente tenham figurado como um dos fatores de criminalização. Nos dizeres de Zaffaroni e Pierangeli:


(...) se a sociedade outorga, ou permite a alguns, gozar de espaços sociais dos quais outros não dispõem ou são a estes negados, a reprovação de culpabilidade que se faz à pessoa a quem se tem negado as possibilidades outorgadas a outras, deve ser em parte compensada, isto é, a sociedade deve arcar com urna parte da reprovação, pois, não pode creditar ao agente uma maior possibilidade de motivar-se numa norma, cujo conhecimento não lhe possibilitou. (ZAFFANORI; PIERANGELI, 2011 p. 715)


O princípio da coculpabilidade propõe a reflexão sobre o grau de liberdade que o acusado de um crime tinha no momento da prática deste, ou seja, qual a possibilidade concreta que o infrator tinha de escolher outro caminho que não a prática do ato criminalizado.


Quando esta liberdade é nula, não há crime, mas um tipo de injusto não culpável, ante a ausência do elemento “exigibilidade de comportamento diverso do autor”. Mas se há algum grau de liberdade, a pena aplicada ao réu deve ser inversamente proporcional a ele. O julgador deve analisar quão culpado o réu é do ato e quanto a sociedade excludente colaborou para a culminação do injusto, dosando a pena a partir desta reflexão.


Neste diapasão, a pobreza, o desemprego, a favelização, entre outros fatores de marginalização são indicadores sociais negativos que devem ser levados em conta para a redução da pena.


As teorias acima apresentadas são relevantes à medida que são possibilidades dogmaticamente construídas de aplicação da culpabilidade não pelo critério do homem médio, que dá azo à ilusão da igualdade perante a lei e legitima a opressão desproporcional aos socialmente excluídos, mas pelo critério do homem real, submetido às condições do momento da prática do ato criminalizado.


Apesar de serem pouco adotadas e aceitas atualmente pela jurisprudência, cabe aos juristas e principalmente aos advogados e defensores públicos, conhecê-las e utilizá-las sempre, em uma luta diária rumo ao convencimento do magistrado e à igualdade real.



Referencial Teórico

SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal: Parte Geral. 6 ed. Curitiba: ICPC, 2014.

ZAFFARONI, Eugénio Raúl. Em busca de las penas perdidas: Deslegitimacion y dogmatica juridico-penal. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 1998.

ZAFFARONI, Eugénio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal: Parte General. 2.ed. Buenos Aires: Ediar, 2002.

ZAFFARONI, Eugénio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. 9.ed. rev. e atual. São Paulo: Editora RT, 2011

[1] A inevitável seletividade operativa da criminalização secundária e sua preferente orientação burocrática (sobre pessoas sem poder e por feitos grosseiros e até insignificantes) provoca una distribuição seletiva em forma de epidemia, que alcança somente aos que tem baixas defesas frente ao poder punitivo e tornam-se mais vulneráveis à criminalização secundária, porque (a) suas características pessoais se enquadram nos estereótipos criminais; (b) seu treinamento só os permite produzir obras ilícitas toscas e, portanto, de fácil detecção; e (c) porque o etiquetamento produz a assunção do rol correspondente ao estereotipo com o que seu comportamento termina correspondendo ao mesmo (a profecia que se autorrealiza) ( tradução livre) [1]

[2] São múltiplos os casos que demonstram definitivamente que em nossa sociedade, os poderosos só são vulneráveis ao sistema penal quando colidem com outro poder maior que consegue retirar-lhes a cobertura de invulnerabilidade, em um conflito que se desenvolve em uma cúpula hegemônica.

Ellen Caroline Mottin é advogada criminalista em Colombo-PR –mottinadvocacia@gmail.com (41) 3656-4664 / (41) 8811-2828


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